Ela avisou-me que esta carta era um bocadinho triste. É normal. Eu sei. Aqui fica mais um bocadinho da vida dela por Angola:

“Gostaria de ter conhecido Angola há 40 anos. As pessoas desse tempo descrevem uma cidade tão bonita. Rica em cultura e recursos naturais. Limpa. Dizem que era um país autónomo, que exportava muito e pouco precisava de importar. É difícil conseguir imaginar isso, comparando com o que é hoje…

Com a guerra, muitas pessoas fugiram das províncias e instalaram-se em Luanda. Hoje, a cidade tem edifícios modernos e muito altos e depois por trás tem musseques e casas do tempo colonial, velhas, sujeitas a cair.

É tão estranho. Às vezes as pessoas contam que este ou aquele edifício velho e a cair já foi um teatro ou um cinema. É nessas alturas que olho para a cidade e vendo o que é hoje, tento imaginar como já foi. É difícil perceber como é que tanta coisa ficou destruída, como é que deixaram a cidade chegar a este ponto? Por que não reconstruíram? Por que não mantiveram as fábricas que detinham? Os campos de café e algodão? Angola produzia tanta coisa, exportava tanto e hoje praticamente é só petróleo. Depende fortemente do exterior. É tudo importado. A carne, os legumes, os cereais, tudo! A produção nacional não é suficiente para alimentar o país e há cada vez menos divisas e menos capacidade de comprar ao exterior.

É tudo importado. A carne, os legumes, os cereais, tudo!

E quando andamos pelas ruas? Não estás bem a ver. Lixo acumulado pelos musseques. Uma tristeza que nos invade o espírito. Podia ser tão diferente. Mas não dá.

Com esta crise há muitos a ganhar e a beneficiar das dificuldades da obtenção da divisa e a cobrar três vezes mais do câmbio oficial. Enquanto isso há empresas a tentar sobreviver, supermercados, a tentar abastecer, farmácias e hospitais sem medicamentos para combater doenças fatais. Sabias que 156.9 crianças até aos 5 anos morrem? E que por cada 100 mil nados vivos morreram 477 mães? Ninguém se importa com isto! Achas normal desaparecerem milhões de dólares que supostamente eram para vacinas e medicamentos?

Não era este tipo de coisas que te queria escrever. Mas Angola é isto. É corrupção, desigualdade, cada um olha para o seu umbigo. Mas, apesar disto tudo, o povo…esse é bastante alegre.  Os angolanos gostam de uma boa festa de quintal, basta haver música e tudo dança. Eles não têm nada e andam sempre bem dispostos. E isto é uma grande lição para nós. Em Portugal, as pessoas andam chateadas pelas ruas, eles aqui não.

Até à morte eles reagem com naturalidade. Uma vez a minha empregada contou-me que a sua irmã e o filho de 8 anos morreram. Eu fiquei sem jeito, mas ela sorriu. Disse que a vida é mesmo assim. Ao princípio achava-os um povo frio, hoje percebo. Não é frieza. É uma defesa. Por isso sorriem. Porque a vida é curta, têm de a aproveitar e não perder tempo com tristezas, mas sim com alegrias.

Beijinhos,

Ana”

Não era este tipo de coisas que te queria escrever. Mas Angola é isto.

Esta ideia de partilhar as cartas dela começou com uma carta minha aos meus amigos. Podem ler aqui. E podem ler a primeira carta dela aqui. A aventura dela por lá vai continuar. Eu vou acompanhando de longe. Ela estar lá é uma aventura para mim também.