Eu era (e ainda sou, porque nunca se deixa de ser) fã da Rua Sésamo. Sei algumas músicas de cor, assumo sem vergonha. Não acho isso uma inutilidade. Nem me ocupa demasiado o cérebro, na medida em que guardar recordações de infância nos faz bem à sanidade mental. Até me dá um certo jeito quando faço asneiras. Porque penso como uma criança.

A Rua Sésamo era uma série que juntava bonecos e adultos. E onde, com puro entretenimento, se aprendiam os números, as letras, as cores ou as formas geométricas. E valores. Amizade. Compreensão. Persistência. Com a avó Chica, a Guiomar, o Egas, o Becas, o Poupas, o Gualter e o Monstro das Bolachas. Tudo num bocadinho de manhã ali entre o Nestum e o sair de casa para a escola.

Quando ouvi falar da peça de teatro, na verdade um musical, “Avenida Q” fiquei de olho arregalado. Mas só a fui ver agora no Auditório dos Oceanos, no Casino Lisboa (está em cena até 15 de Outubro). Eu adoro musicais. Mais ainda no teatro. Tenho imensa estima, admiração e respeito por quem consegue cantar, dançar e representar em direto sem direito a enganos ou repetições. Acho que são artistas de verdade. Há no teatro português um profissionalismo digno daqueles aplausos de pé. Fazer teatro musical deve ser a arte mais completa e complicada também. E neste caso, há ainda um acréscimo. Além de juntarem todas estas habilidades, alguns atores, em cena, ainda têm de manobrar uma marioneta, em forma de boneco, que são as personagens na verdade, tal como havia na Rua Sésamo.

A “Avenida Q” é feita por jovens actores que merecem todas as ovações. Porque são novos de idade mas são mestres, já com muitos anos de profissão atrás deles. Ana Cloe, Diogo Valsassina, Gabriela Barros, Inês Aires Pereira , Manuel Moreira, Rodrigo Saraiva, Rui Maria Pêgo, Samuel Alves, Artur Guimarães, Luís Neiva e André Galvão fazem um brilhante espetáculo, sem esquecer a banda sempre a acompanhar. Até me deixaram com um bocadinho de inveja, pois nos meus sonhos de criança, quando brincava no meu quarto, também eu cantava, dançava e inventava histórias.

Esta história trás o Luis, um recém-licenciado, à “Avenida Q”, para procurar um quarto. A partir daí desenrolam-se várias histórias focadas na vida árdua de um adulto com contas para pagar. A procura de um emprego. A procura de um amor. A descoberta de um sentido para a vida ou o tão aclamado sonho que nos comanda. Onde é que ele está? Se já é duro seguir um sonho, imaginem quando não se tem nenhum.

Com um estilo descontraído são abordados temas como a sexualidade, o racismo, a internet e os refugiados, por exemplo. No meio de tantos temas sérios não conseguimos parar de rir cada vez que começam a cantar. Afinal, é sempre possível levar tudo um bocadinhos menos a sério. A vida já basta. Devemos rir o mais que nos for possível. E olhar para as coisas com outros olhos. Sou sempre agradecida a quem desconstrói os grandes temas desta forma. No final, a mensagem passa muito melhor. Os diálogos tão muito bem escritos e a interligação entre as personagens e entre os temas abordados está muito bem feita, mas…mas as músicas são de génio. De rir do principio ao fim. Tentei reter até mesmo alguns versos para utilizar no dia-a-dia porque pensei que me podiam dar jeito.

O espetáculo começa com cada a um a dizer o motivo porque a sua vida é uma merda. Claro que cada um está pior do que o outro. Porque, já se sabe, a minha vida é sempre feita de uma cagada maior do que a cagada do outro. Se o vizinho tem uma dor no dedo, a mim dói-me a mão inteira. Se o outro esta constipado, então eu tenho uma gripe. Se alguém está gordo então eu estou obeso. Começarem um espetáculo a cantar “que merda que eu sou” é o melhor spoiler que vos posso dar. E mais não vos conto.