Livro “Uma Educação” e bolo de limão | Páginas Salteadas
O Páginas Salteadas é um projecto que pretende juntar leitura e comida. Com um ingrediente estipulado a cada mês, cada um lê o livro que quer e faz a melhor associação à receita. Para Março seleccionamos limão e eu escolhi o livro “Uma Educação”. O resultado foi um bolo de limão e um livro que me surpreendeu muito.
Porque é que decidi fazer a receita de limão baseada no livro “Uma Educação”? Eu explico, dos livros qu e li em Março, este combina na perfeição com o limão. Além de rimar, claro. E digo-vos porquê. É agridoce. É amaro no seu conteúdo, mas necessário para entender outras realidades, que muitas vezes são impensáveis para nós.
- Relata situações incompreensíveis, que na maior parte das vezes nos fazem ler de olhos franzidos enquanto pensamos “mas é possível alguém pensar desta maneira?”
- É um género literário que leio muito pouco (biografia) e o limão é um ingrediente que geralmente só uso para temperar (ou em bebidas tipo gin)
Livro “Uma educação”
Tara vive com os irmãos e os pais nas montanhas. Não há registos do seu nascimento porque nasceu em casa e nunca foi a um hospital nem à escola já que os seus pais não acreditam no sistema. A família passa a vida a armazenar conservas para conseguirem sobreviver no fim dos tempos que o pai acredita estar próximo.
Além das crenças limitativas (e limitadas) do pai, da submissão da mãe e da violência do irmão, tinha ainda que lidar com um trabalho na sucata. Mas há um dia em que decide que quer estudar. E com 17 anos vai conhecer um mundo que não sabia que existia.
” A mãe não queria ser parteira. Essa ideia fora do pai, um dos seus esquemas para sermos autossuficientes. Não havia nada que mais odiasse do que o facto de sermos dependentes do governo. O pai dizia que um dia haveria de viver completamente à margem do sistema. (….)A mãe era ervanária para tratar da nossa saúde. Se aprendesse a ser parteira podia ajudar os netos a nascer, quando estes viessem“
Se a educação era vista como uma manipulação a saúde era regulada segundo as vontades de Deus. Recordo-me de uma situação em que Tara, já na universidade, tomou pela primeira vez um medicamento. Estava aflita de dores mas cheia de medo de ir contra a ideologia dos pais que se afastavam da medicina como o diabo da cruz. A mãe foi capaz de lhe mandar óleos para a livrar do mal de satanás em vez de lhe enviar alguma coisa para a verdadeira maleita de que ela padecia no momento.
A minha review
Aquilo que mais me impressiona é que Tara tem a minha idade. E a nossa infância, a nossa adolescência e a nossa vida são experiências completamente diferentes. “Uma Educação” é um livro de não ficção a forma de relatar as coisas é bastante crua e direta sem os enredos que um livro de ficção exige. Pode, por isso, ser muito cruel naquilo que nos apresenta, mas eu não vejo as coisas assim. Eu acho que ser confrontada com uma realidade tão diferente da minha me acrescenta muito e me faz encarar com outros olhos o sentido do privilégio.
Demorei um pouco a entrar no mundo de Tara, devo confessar. Foi na durante a segunda parte do livro que me entreguei completamente e entendi toda a sua mensagem e importância. Acho que é um livro bastante necessário história que nos conta mas também pela quantidade de temas que aborda: instrução, conhecimento, descoberta, mudança, transformação, origens, violência, saúde mental, psicologia, religião, medicina, submissão, crenças, auto sabotagem e por ai a fora.
Ao ler o livro “Uma Educação” estamos em reflexão constante. Há frases, momentos e histórias que nos vamos recordar mais tarde. Este livro é sobre os vários papeis que desempenhamos. Sobre as escolhas que fazemos. Sobre a formação do nosso caracter. Sobre o que deixamos para trás e o que alcançamos a seguir. É sobre decisões com as quais temos de saber lidar. É sobre emoções e como controlá-las. É sobre ganhar e perder. É sobre o que a mente nos faz ver e no que nos faz acreditar. É sobre muitas coisas.
A importância do acesso à educação e ao conhecimento vs as origens e elo familiar
Apesar deste livro garantir muitas reflexões, os dois grandes pontos fundamentais são a educação e a família. Tara vivia num limbo entre o poder forte do laço familiar e a destruição que lhe causara e por outro lado presa num mundo onde tinha todo o conhecimento e experiências à sua frente mas onde não se sentia em casa. De quantas coisas temos de abdicar para sermos quem realmente somos? E o que somos é produto da nossa formação (educação vista como instrução) e fruto das experiências que temos ou das convicções familiares com que somos educados e confrontados toda a vida?
” O pai ensinara-me que não podem existir duas opiniões razoáveis sobre o mesmo assunto. Existe a verdade e existem mentiras. Estava ajoelhada sobre a alcatifa a ouvir o meu pai e ao mesmo tempo a estudar aquele desconhecido e senti-me suspensa entre eles. Atraída para ambos, repelida por ambos. Compreendi que nenhum futuro podia conter os dois”
Esta citação é para mim das mais poderosas do livro. Já viram o que está aqui escrito? Um pai e uma filha. Um pai que passa um ensinamento no qual acredita piamente. Esta convição pode colocá-los do mesmo lado ou afastá-los para sempre. Basta decidirmos ser coniventes ou ser livres.
Receita de bolo de limão
Raramente uso limão numa receita doce. Mas sei que para muita gente o limão é doce. Na verdade, eu adoro gelado de limão por exemplo. Para combinar com o estilo de livro (uma biografia/não ficção) que pode ter diferentes perspectivas e onde sai da zona de conforto nas minhas leituras e tanto me agradou, resolver meter o limão num doce.
Ao decidir fazer um bolo sabia que podia não correr bem porque geralmente cá em casa os bolos ficam mal cozidos ou não crescem. Fui com medo mesmo! A Tara também tomou as suas decisões.
Durante a confeção a batedeira avariou e segui batendo mesmo com a colher de pau. Só vos posso dizer que foi o melhor bolo que já fiz nesta casa.
Ingredientes
- 2 ovos
- 1 chávena de açúcar
- 3 colheres de sopa mal cheias de manteiga
- 2 limões
- 3 chávenas de farinha
- 1 chávena de leite
- 1 colher de chá de fermento
Preparação
Separar as gemas das claras. Numa batedeira juntar as gemas, o açúcar e as colheres de manteiga. Raspar dois limões e adicionar as raspas e o sumo dos mesmos limões ao preparado. Adicionar a farinha, o leite e o fermento. Por fim, envolver as claras previamente batidas em castelo.
Untar uma forma de bolo inglês com manteiga e farinha, mesmo à moda antiga. Levar ao forno, já aquecido, por 40 minutos a 180graus. Desenformar e comer enquanto se lê o livro “Uma educação”
Espero que tenham gostado de mais um post para o Páginas Salteadas. É curioso como um livro que se chama “Uma Educação” são sobre as mil formas de ensinamentos que podemos receber.
Se quiserem dar largas à imaginação, em Abril o ingrediente do mês será Noz moscada!
Sofia Costa Lima
Também gostei muito de “Uma Educação”. Sinto que deixa mesmo muito em que pensar sobre educação e sobre crenças.
Fiquei com vontade de fazer esse bolo! 🤤
A Sofia World
Andreia Moita
Foi exatamente isso que pensei. Muito da educação que temos e seguimos é baseada em crenças. Este livro também me deixou ver a diferença entre educação e instrução ou formação académica, vá.
Green
O livro parece ser super interessante e o bolo tem um ótimo aspeto 🙂
Andreia Moita
É um livro diferente do género que costumo ler e não estava a espera de gostar tanto. O bolo é muito fácil e saboroso.