livro as coisas que faltam

Adoro fazer reviews com spoilers. É mais interessante. E controverso. Mas, bom spoilers, mais ou menos. Prometo que não vos conto nenhuma situação que vos vá estragar a experiência de leitura aqui. Mas há uma certa diferença entre falar para quem já leu o livro e tentar convencer alguém a lê-lo. Hoje escolhi desabafar sobre o que senti a ler o livro “As coisas que faltam” como se vocês já o tivessem lido também.

Livro “As coisas que faltam”

Esta história fala-nos, na primeira pessoa, de alguém que nunca conheceu o pai e vive amargurada (será melhor dizer condicionada?) por isso. Todos os acontecimentos, pensamentos e comportamentos giram à volta desse facto. Só que em vez de a Ana Luís agir, ela limita-se a reagir. E pouco. Muito pouco.

Muitas vezes achei que a Ana Luís não sentia falta do pai mas sim da mãe (choquem-se!) Que a sua insistência em conhecer o pai não era para preencher o vazio da sua ausência mas sim para colmatar a falta de afetividade da mãe. Na minha interpretação (e aqui reside a graça dos livros) o que faltou à Ana Luís foi a mãe.

A sua inércia perante a vida, a sua apatia, insegurança e passividade derivam dos comportamentos que a mãe (não) teve para com ela. O seu crescimento e desenvolvimento é assim pautado pelo desapego que se manifestava das mais diversas formas. Desde os “não” que lhe eram dados a torto e a direito até às inúmeras vezes que teve de abandonar pessoas e coisas à sua volta. Mudar de casa, deixar a amiga com quem lanchava húngaros, nunca mais ver a tia Ermelinda…todas coisas que foi largando ao longo da vida foram deixando marcas enquanto a única coisa que realmente achava que a magoava era a ausência do pai.

A Ana Luís

Ana Luís traz a ingenuidade presa ao pescoço. (Gente do céu, quem é esta pessoa?!) Mas não é uma ingenuidade à qual achamos graça. É daquelas que queremos abanar porque não é possível. Eu quis pôr pioneses debaixo daquele sofá onde ela se sentava a olhar para o raio da mancha na mesa que o outro traste lá deixou marcada! No final, por exemplo, há ali uma coisinha em particular que me fez pensar: “Eu aguento tudo menos isto” 

Ingenuidade é talvez até um eufemismo. Porque eu acho mesmo que a pobre criatura chega a humilhar-se várias vezes. É sufocante assistir a isto.

Não vivi a minha infância desta forma. E sobram me as coisas que faltam à Ana Luís, (diria, graças a deus se fosse religiosa) Não tendo semelhanças que me aproximem desta história é-me fácil julgá-la. (Eu sei que é feio julgar as pessoas! Mas, olhem, não vale a pena estar com meias palavras. Eu julguei esta personagem. Não me revejo em nenhuma ação dela porque eu explodia de todas as vezes que a Ana Luís se conteve. Eu não faria um terço do que ela fez para conhecer aquele pai. Porém, identifico-me com a necessidade abstrata que ela tem de procurar alguma coisa no desconhecido. É meio tonto, mas é o que é.

A mãe, Lucinda

Estava aqui a falar sobre julgar a Ana Luís. E lembrei-me que julguei muito também esta mãe. Porque é que ela não dizia de uma vez o que se passava! No final, compreendi, claro! Apesar de lermos o livro na voz da Ana Luís, a Lucinda é a personagem que mais se expõe. Não de forma escancarada, temos de ter alguma sensibilidade de encontrá-la lá no meio. E isso, propositado ou não, está bem feito.

O título importa

“As coisas que faltam” é um título certeiro, sabem porquê? Porque a Ana Luís vive atormentada pela ausência do pai, que sem conhecer idolatra, ao imaginá-lo como uma figura muito melhor do que todas as outras com quem lida. Mas a mim pareceu-me que que lhe faltavam muito mais coisas. Um pai. Uma mãe. Um amor. Mais destreza. Mais coragem. (Muito) mais impulsividade . Mais voz.

É curioso mas “As coisas que faltam” deixa-nos em falta alguma coisa também a nós. Sim, sentimos falta de algo durante a leitura. Eu não sei o que é. E perdoem-me a repetição da palavra. Mas fascina me que uma narrativa consiga deixar-me a pairar. Será o tom soturno que impacta e inquieta? Não me emociona (que sou caranguejo mas choro pouco) mas desperta-me para a realidade. Há tantas vidas diferentes.

A escrita

Há uma profunda tristeza marcada a ferro neste livro, durante toda a história. Reconheço os traços da Rita principalmente nas analogias ou metáforas que, no meio da névoa, são fraturares e nos ajudam a ver as coisas da cor que elas são. Há, no meio do texto, sempre um toque de criatividade na linguagem. Não lhe vou chamar melódica nem melancólica porque não achei. Achei antes algo sensível porém desconstruído. Muito emotivo, cru e real, o livro “As coisas que faltam” prova que não tem que haver uma linguagem rebuscada, que ninguém entende, para ser bem escrito, trazer lições, fazer pensar. Acho que foi disso que eu mais gostei. As comparações feitas de forma despretensiosa mostram que é possível escrever sem estar a pensar em construir frases para os leitores sublinharem (não estraguem os livros, plamordedeus!)

Também as descrições, pouco massudas, são vívidas. Eu vi com clareza o sofá maple da Tia Ermelinda e senti o cheiro bafiento daquela casa. Vi a imagem da Lucinda com a caixa na mão. (Antecipei o que tinha dentro e apeteceu-me dar um empurrão à Ana Luís para que saísse da ombreira porta e fosse lá perguntar o que era aquilo, pah!)

A história

Este tipo de história, baseada sobretudo em personagens e comportamentos, e menos propriamente em enredo, não é a minha preferida.  Contudo as histórias tristes sim, gosto, obrigada! A beleza da tristeza. Ela existe. Há uma certa dose de conforto em ler coisas que sabemos que à partida não vão correr bem. Se calhar sou má pessoa, mas nunca dei por mim a desejar que corressem.

Vou confessar uma coisa, eu gosto de ler reviews depois de terminar o livro. Talvez por isso, tenha esperança que vocês também queiram ler esta. E estou a adorar ver como as reviews que estão a ser feitas são bonitas de ler também. Como se as pessoas tivessem necessidade de fazê-las ser uma extensão do livro.