o filho

“Mexeu com coisas do meu quotidiano. Foi buscar coisas… os problemas da…, a morte da…” ouvi eu, quando ia a sair da sala do Teatro Aberto, a passos lentos, depois de uma ovação de pé, durante vários minutos, pela excelente prestação dos atores Paulo Pires, Cleia Almeida, Sara Matos, Rui Pedro Silva Paulo Oom e Pedro Rovisco, em “O filho”. Uma peça que foi forte, difícil, e bastante emocional. Inquietante mas viciante e tão cativante. É impossível ficar indiferente. É a vida diante dos olhos, ao vivo.

Como eu costumo dizer as histórias tristes marcam e ficam connosco durante mais tempo (Por isso, só estou a escrever este texto passado uns dias de ter assistido).

“O filho” – teatro é sentir ao vivo

Durante quase duas horas, perante uma plateia em silêncio, expectante, assisti à peça “O Filho”, a convite do Teatro Aberto. Uma encenação e interpretação que faz jus ao verdadeiro sentido desta arte que é a representação ao vivo. Eu sou uma pessoa de histórias. O teatro é uma das formas mais antigas de as contar.

“O filho” é uma narrativa familiar onde vemos que muitas vezes as formas de educação repetem-se mesmo quando dizemos que queremos fazer diferente dos nossos pais, sabem? É aqui que ficamos se é assim tão óbvio quem é “o filho”, afinal? É tão interessante e gostava muito que pudessem assistir para compreender o que estou a dizer. Os ciclos familiares, a par de assuntos relacionados com a doença mental, são o foco do retrato desta peça.

Sinopse e trigger warnings

Após o divórcio dos pais, Nicolau fecha-se dentro de si. Não é o mesmo de antigamente. Começa a reagir de forma diferente. A dizer e a fazer coisas “estranhas”. Os pais já não sabem como lidar com ele.

E pergunto eu, como se ajuda alguém sem saber qual é o problema? Como se faz se a própria pessoa que precisa de ajuda não se entende a si própria, se sente perdida e sem motivação? Como se reage à mudança de comportamento de alguém de quem gostamos tanto e é apenas um adolescente que precisa de alguma coisa que não sabemos o que é?

O que é que se passa”? “O que é que se passa?”. Esta frase, em tom de desespero e frustação é a mais dita durante a peça. É praticamente um grito de amargura de quem quer compreender a perda de entusiasmo e propósito de um adolescente que outrora fora uma criança sorridente.

Esta história pode conter alguns trigger warning. Eu não costumo descrevê-los nas minhas reviews. Mas sendo a saúde mental precisamente o mote da história, vou tentar alertar-vos sem dar spoiler e ao mesmo tempo deixar-vos com vontade de assistir: Adolescência, depressão, automutilação, pensamentos suicidas, divórcio, luto e fantasmas do passado são trazidos para cena num emaranhado de situações que enquanto publico vamos absorvendo.

Review e reflexão pessoal

Não sei se todos na sala eram pais. Mas com certeza todos já tinham sido adolescentes. É tão difícil olhar para adolescentes agora que já não o somos. Os pais devem entender perfeitamente todas as dúvidas que assolavam aqueles dois pais em palco. Quem não o é, pode antever as dificuldades de tomar decisões que se pensa serem as que salvam os filhos, ou mais ainda pode-nos fazer entender algumas das palavras dos nossos pais quando éramos nós os adolescentes. Fossemos nós ajuizados, tranquilos ou rebeldes e revoltados. Os pais se calhar estavam só a fazer o melhor que sabiam e podiam. É tão fácil dizer, “então mas não se aperceberam”? O julgamento é sempre o primeiro instinto. Mas não terão os pais os seus próprios demónios para lidar também?

Senti tantas mensagens ali. E é um gerador de reflexão complexo porque pode fazer-nos lembrar algo que já tenhamos vivido ou de algo parecido na vida de alguém próximo. Mas o mais fascinante (e o que valorizo nas histórias) é que mesmo sem estar ou ter estado perto da realidade que é contada ali, conseguimos senti-la em nós, imaginando-a, tanta é a verdade e entrega depositada ali. A percepção que temos das coisas estando dentro ou fora delas é tão diferente. As escolhas de cada um são sempre questionáveis quando não estamos no papel principal.

A interpretação

Veias salientes de raiva de tanto que estavam a sentir a personagem pulsar dentro de deles. A expressão corporal que fala connosco e nunca se sente desta forma na televisão, por exemplo. Os olhares penetrantes. Os risos sinceros. Os choros sentidos. As mãos ansiosas. Tão intenso. As emoções todas a tão pouca distância de nós faz parecer tudo tão real. Aplausos de pé para o ator mais jovem em cena. Ele deu tudo. Eu achei que ele não era um atos, era mesmo o Nicolau.

O texto e a mensagem

Poderosos. A mensagem era carregada de significados. Há tanta coisa para apreender. Camadas. Cada uma das personagens e situações encerram em si inquietação e empatia. A forma de falarem era poética e tocante. Se estivesse a ler aquelas palavras, em vez de as ouvir, sublinhava-as. Punha marcadores no livro inteiro só para recordar as passagens depois. E as coisas eram ditas com tempo. Cativante.

O cenário

Das melhores transições de cenários. E um excelente trabalho de luzes. Sons. Os momentos de troca eram preenchidos com imagens que passavam a preto e branco diante dos nossos olhos, como um filme. Em silêncio tocavam-nos tanto quanto as falas. O passado, o presente. Um breve vislumbre do futuro.

Ao ver esta peça, eu que estou longe da realidade ali presente e sou só uma adulta ainda sem filhos, senti quase o mesmo que a senhora de quem vos falei no inicio do texto.

Obrigada Teatro Aberto pela oportunidade de presenciar arte e cultura em português. Não percam a oportunidade de ver “O filho”, em cena até dia 18 de Junho. Vejam mais informações e comprem aqui.