Gavetas vazias

Tenho um certo fascínio por gavetas vazias. Para enchê-las de novo! Não, estou a brincar. Vá, não só, mas também. Na verdade, gosto da sensação ver a gaveta sem nada. Contudo, não gosto do trabalho que dá fazê-lo, que inclui fazer uma seleção do que fica e do que vai.

Geralmente esvaziamos uma gaveta para voltar a arrumá-la depois com os mesmos objetos mas organizados. Eu tenho alguma dificuldade em fazer a seleção do que fica e do que vai, devo confessar. Haja tempo para arrumar gavetas. No caso, teria que deitar tudo fora para a gaveta vazia acontecer. Ou seja eu gosto do fim mas não do processo para lá chegar. É mais ou menos como quando corria achando que era um desporto (ou seja, por vontade própria) Nunca gostei do acto da corrida em si. Sair de casa era doloroso e o durante era penoso para mim. Eu só gostava mesmo era da sensação que me dava quando terminava. Nem era o “dever cumprido”. Era mais voltar a respirar.

Todos temos a gaveta que parece a loja do chinês: tem tudo lá dentro. Há objetos que temos e que simplesmente pertencem àquela gaveta. Como há roupas que não são para lavar nem para arrumar, que ficam naquela cadeira.

O que eu gosto mesmo é de ter gavetas vazias mas para ter a sensação de haver espaços novos por preencher. Como uma agenda em Janeiro. Como uma casa nova. São sítios sem histórias. Preparados para recebê-las. E eu gosto de fazer histórias novas.

As gavetas vazias ou cheias do Bairro das Cruzes

Gostava de espreitar as gavetas dos outros (…) certa vez a minha mãe apanhou-me a abrir uma gaveta em casa da Eugénia costureira. (…) eu não queria roubar, ou mexer sequer, só queria ver. (…) era a minha maneira de sair da casca, de explorar mais do que as paredes da minha casa, de inventar histórias e me sentir viva.” (in Bairro das Cruzes, de Susana Amaro Velho – o trecho que me inspirou a escrever este texto – Não é uma review mas leiam, que o livro é muito bom.)