O cheiro da infância

Em muitas entrevistas aos famosos perguntam-lhes pelo cheiro da infância. Meti-me a pensar no meu.
É o cheiro das torradas feitas no fogão da minha avó. Eu passava as minhas férias com os meus avós, na “terra”, um lugar onde a água se ia buscar à fonte. Não havia torradeira, mas eu comia o pão torrado diretamente nos bicos do fogão. As carcaças, partidas ao meio, que o padeiro deixava à porta de manhã cedo, ficavam com as pontas de miolo pretas.
Sei hoje que podia não ser a coisa mais saudável do mundo. Mas o sabor ainda me está na língua tal como o cheiro de pão “queimado” está debaixo do meu nariz. Ainda vejo a manteiga derreter-se. Daquela demasiado mole que hoje não gosto. Era este o amanhecer comum antes de começar um dia de brincadeiras debaixo de sol quente, pelas estradas de pedra, em liberdade e sem medos nenhuns. Com cheiro de infância feliz.
O cheiro da infância a mudar
Houve um dia em que chegou uma torradeira. A modernidade, a evolução. E com ela, as torradas a sério. Mas essas eu comia em casa, em Lisboa, todos os dias. Ali eu queria torradas de fogão. Porque ali os cheiros eram diferentes, tal como os dias.
Já nada desta história está hoje conforme era antes. Nem eu. Já não como carcaças. A minha avó só existe na minha memória. A casa já tem torradeira e a água já corre nas torneiras. Há muitos anos que deixei de lá ir, talvez há tantos quantos deixei de ser criança. Mas o cheiro da infância só é reconhecido quando somos adultos. Nunca sabemos na hora em que estamos a fazer alguma coisa que devemos guardá-la de recordação como uma fotografia ou um filme. São os próprios momentos que andam à bulha e escolhem entre eles quais se agarram à nossa história.
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