Conto de natal | A tradição (ainda) é o que era
Gostava do natal. A sua carga emocional assim o exigia. Trazia no bolso do avental gasto a receita, que sabia de cor, amachucada pelo tempo. O melhor repasto era repetido todos os anos. Era esta demanda da tradição que a angustiava. Era a sentença de reiteração que a desalentava. Ano após ano. Um após o outro. A ausência de novidade no ritual à volta da mesa era o que a incomodava mais.
No final da noite acumular-se-iam os pijamas polares e as pantufas quentinhas ao lado dos chocolates. Era sempre assim. Todos os natais. Um loop. Um dejà vu. E onde todos viam luzes, ela via preto e branco. Eles viam normalidade, ela conformismo. Queria trazer novidades a uma família de hábitos. Mas as natas não tinham lugar junto deste bacalhau. Nunca! Que ultraje seria mudar o que se faz há milhares de anos. Jesus Cristo é o único que tem ementa destinada para o seu aniversário.
Porque ela via a tradição como uma carga pesada que se cansava de carregar. Queria fazer diferente. Ao menos trocar a toalha de mesa que era sempre a mesma porque…era assim! A tradição era, para ela, como aquela tia da terra. Nunca foi nova. Já a conheceu velha. Sempre a conheceu assim.
Na noite antes do natal desejou que as coisas fossem diferentes.
Quando acordou e desceu as escadas não havia nada preparado para a consoada. Arregaçou as mangas e vestiu o mesmo avental de todos os anos, com motivos natalícios e marcas de queimado. Mas no regaço não encontrou a folha de papel amarelecida pelo tempo. A receita de família faltava-lhe. Este ano não faria as farófias da avó.
Um prato partiu-se quando abriu o armário. Pequenos pedaços espalhados atrasavam o trabalho do dia exigindo a sua limpeza. E o serviço que colocou na mesa foi o mesmo que ia ao micro ondas todos os dias e não aquele destinado a ver a luz apenas uma vez ao ano.
A família chegou a conta gotas. Mas os miúdos estavam sossegados. Não ouvia gritaria. A lareira estava vazia de calor. E as tias já sabiam onde estava o azeite. O pai não gostou do vinho. A mãe achou que as batatas estavam boas. O primo fartou-se de comer couves. Era vegetariano, agora. O mais novo da família já era demasiado grande. A dada altura da noite o avô optou por ir andando para casa, desta vez não ia esperar até à meia noite para descansar os olhos. A Tia Guida não tinha comprado nada. A avó já não estava lá. No final da noite acumulava-se na travessa a nova sobremesa, que tinha orgulhosamente substituído as farófias. Ninguém comeu. Não era boa!
E onde todos viam aborrecimento, ela via constrangimento. E onde todos viam preto e branco, ela via mais escuro ainda. Os olhos brilhantes de todos os outros anos não se repetiam desta vez. As gargalhadas estavam silenciosas. As palavras cabisbaixas.
Lembrou-se da antiga toalha de mesa. Queria ouvir o ressonar do avô no sofá e indicar onde costumava guardar o azeite. Mas acima de tudo queria de volta a velha receita, símbolo máximo do valor do natal, de volta ao bolso do seu avental. Aquela que lhe trazia o açúcar, a canela e a avó de volta à mesa. Como antes.
A percepção da ausência de todos os movimentos que antes previa causou-lhe um arrepio. Um tremor através do qual viu com toda a clareza o poder da tradição da qual desdenhou. A tradição ainda é o que era: sentimento, emoção, intemporalidade, imortalidade.
A tradição perpetua as memórias. Aquelas que um dia toda a família criou em conjunto. Os sabores, cheiros, frases ou folhas de receitas manchadas de óleo trá-las de volta. Manter e honrar a tradição é a homenagem mais bela dessa história um dia escrita. A tradição não é repetir momentos. É matar as saudades deles.
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Gostei do texto! Eu própria já não sei bem se gosto do Natal ou não. Gosto do Natal e sempre gostei mas é uma altura em que fico muito cansada por pensar em mil e uma coisas. O Natal tornou-se uma altura do ano em que fico cansada. Este ano tentei aligeirar e “não ser tão intensa” e fiquei menos cansada que os últimos Natais. Mas talvez o problema esteja em mim, que não estou a saborear bem o Natal 🙂 Bom Ano!