O Pão | Conto
O texto que se segue é o resultado de um exercício de escrita entre amigas. Deram-me uma personagem para a qual eu devia escrever uma história que mostrasse as seguintes características: A Gabriela tem 38 anos e é uma pessoa sem ambição, simpática, metódica, reservada e feliz. Um facto relevante sobre ela é que leva uma vida perfeitamente normal, muito rotineira e nem se apercebe que há anos apenas existe. Pensa que a felicidade é isto, a vida sem altos e baixos. Não faz nada de novo há anos. A rotina é sempre a mesma, visita sempre os mesmos locais, come sempre os mesmos pratos.
Por ser uma personagem tão diferente de mim adicionei eu mesma o desafio de escrever na primeira pessoa. Agora mostro-vos o que escrevi. Chamei-lhe “O pão”.
Não sei em que medida me devia sentir diferente hoje face àquilo que fui ontem. Física ou emocionalmente falando. Ou até metaforicamente. Que é o que acho que as pessoas fazem quando dizem que já não são quem foram. Quem eram. Falam em metáforas. Às vezes em hipérboles. Provavelmente é mais isso. Será que efetivamente as pessoas mudam? Mesmo? Mas mudar de facto a forma como pensam e veem o mundo e quem estar dentro dele. Mudar realmente de valores ou percepções? Mudar por dentro. A essência. A personalidade. As coisas que fazem as pessoas gostarem de nós ou não gostarem. O que nos torna melhores ou menos bons.
Debato-me com estes pensamentos enquanto me sirvo da mesma torrada de todos os dias. Bom, não a mesma no sentido literal. Uma igual. Compro sempre o mesmo tipo de pão, ao fim do dia, e barro-o com o mesmo tipo de manteiga depois da torradeira o queimar de manhã. Aquele pão é o meu primeiro momento de conforto do dia. É a minha primeira felicidade. A primeira sensação de que está tudo no lugar que deve estar. Bem macio por dentro e crocante por fora. O mesmo pão. A mesma pessoa. Há um momento de alegria profunda em cumprir rituais. Há algo de apaziguador em saber que os dias começam sempre assim. Iguais.
Dizem-me, muitas vezes, que as mudanças fazem falta e que são parte da vida. Aquelas frases de incentivo que pretendem desencaminhar as pessoas. Ditas sem grande entusiasmo, sem grande propósito de maneira igual a toda a gente pois presume-se que todos gostam de sentir adrenalina no corpo. Formigueiros nos pés. Borboletas na barriga. Sugerir a alguém que mude é o símbolo mais elevado de que continua tudo igual na cabeça das pessoas. Porque não compreendem a paz de quem não faz. A maioria continua a meter-se em caminhos apertados para sentir alguma coisa diferente todos os dias. Conseguir felicidade todos os dias de manhã com o mesmo pão torrado é uma virtude tão grande quanto a daqueles que comem um pequeno-almoço diferente todos os dias.
O telefone toca. É a minha amiga a propor um programa diferente para este fim-de-semana. Os meus amigos inventam coisas novas todas as semanas. É exaustivo. Mas dizem que precisam disso para se sentirem despertos e espertos. Já eu sinto-me revigorada com a certeza da repetição. Quando sei a sensação que determinada ação me vai provocar. Como aquela torrada de manhã antes de percorrer a mesma estrada para o trabalho que tenho há 10 anos.
Trabalho numa fábrica de gelados. Fascina-me a linha de montagem. Porque as coisas não saem do lugar. A imutabilidade. A certeza da mesma receita. Em equipa que ganha não se mexe.
À saída do meu turno, já no carro, algo não bate certo. Desconheço a sensação. Ouço um barulho esquisito. Paro. Vejo um furo. Entro ligeiramente em pânico. Não sei lidar bem com infortúnios. Azares. Imprevistos. Para mim são falhas no sistema. Um colega que seguia o mesmo caminho na estrada, para gentilmente e aproxima-se para me ajudar. Aceito. Já ao convite para beber café respondo “um dia destes!” mais por simpatia do que por vontade. Que as coisas estão bem com estão. Faço a habitual paragem na padaria.
Mas chego depois da hora normal. Acabou o pão.
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