quando os rios se cruzam

Um dos pontos fortes de “Quando os rios se cruzam”, ou aquilo que pelo menos a mim me tocou de forma especial, é a reflexão que proporciona acerca de vários assuntos dispersos entre si. Cada um de nós vai a sítios diferentes dentro da sua própria história. Eu fui a Turim. Mas fui a muito mais lugares cá dentro.

Além da review de “Quando os rios de cruzam”, o segundo livro da Rita da Nova, vou comentar algumas das passagens que mais coisas me disseram ao ouvido.

Review geral de “Quando os rios se cruzam” sem spoilers

“Quando os rios se cruzam” é sobre sermos pessoas diferentes em diversos contextos. Ora, eu concordo. Mantendo a nossa essência, valores e personalidades, agimos de maneira distinta conforme o lugar onde estamos e as pessoas com quem estamos. Somos um misto de circunstâncias. E o tempo vai nos moldando.

Com uma escrita irrepreensível e embelezamento na medida certa, esta é uma história sobre construção de personalidade, crescimento, amadurecimento, amizade, descoberta, deslizes, (in)consciência e pertença.

Desde início senti uma tensão. Como se algo mau estivesse prestes a acontecer, sabem? Acho que a história nos leva devagar para o abismo. Pelo menos é isso que eu quero que ela faça. (Riso maléfico!) Não me interpretem mal, mas esperei encontrar sofrimento aqui tal como quando era miúda e metia música de propósito para chorar.

Devo dizer que houve alturas em que desejei ler menos sobre festas, bebedeiras e irresponsabilidades. Mas é o única coisa que posso apontar. As descrições da vida em Turim foram perfeitas, sendo a cidade uma personagem ela própria! E gostei da personagem da mulher sem nome, sentada no degrau, que para mim é uma representação do leitor. Estarei doida? Esta é a magia dos livros, cada um interpreta à sua maneira. Eu explico: ela faz as pausas necessárias que um leitor fará. Ela faz as perguntas que nós queremos fazer também. E no final tira as suas conclusões. Como nós.

A Leonor

Durante algum tempo, questionei-me se a Leonor, uma jovem que viaja de Erasmus, toma as suas decisões para desafiar a mãe ou por outro lado, para se convencer a ela mesma das suas capacidades, quando está num outro ambiente. Dei por mim a pensar se ela foi para Itália para se conhecer a si própria ou para se libertar da mãe tóxica. Noto-lhe tendência para agradar os outros e uma dificuldade em dizer “não” com a desculpa de “não querer perder oportunidades”. Ao mesmo tempo, admiro-a por todas as coisas que acabei de dizer. A essência da Leonor é mais ou menos um reflexo de todos nós. A dualidade entre o certo e o errado. Com pensamentos bons e maus. Tentativa. Erro. E vejam, como eu estou a falar de uma personagem como se ela fosse minha vizinha ou assim.

As personagens da Rita são imperfeitas e cheias de contrariedades como as pessoas verdadeiras. Posso gostar mais ou menos delas. Mas vejo realidade nelas. Precisamente por me fazerem sentir sempre coisas (vejam também a review que escrevi sobre “As coisas que faltam”)

O final

Adorei encontrar, no final, a ligação do título à história. Ou, bom, segundo a minha interpretação, claro. “Quando os rios se cruzam” é o mesmo que quando todas as nossas formas de ser se juntam. Portanto, quando aceitamos que somos muitas coisas. A água está sempre a correr. Tal como nós estamos sempre a mudar. Giro, isto!

As frases que me fizeram pensar para lá da história

“Recordar o que se passou já não é só regressar àquela noite em Turim para reviver os acontecimentos. De cada vez que nos juntamos para assinalar a data, estamos a acrescentar-lhe a memória de todos os reencontros: as coisas que ainda temos vontade de partilhar uns com os outros, o peso que a vida nos foi pondo nas costas, os sonhos que ficaram pelo caminho.”

Sabem quando nos reencontramos com as pessoas que não vemos há anos? Naturalmente já não somos os mesmos, mas assim que nos sentamos todos à volta das conversas do passado voltamos a ser quem éramos por momentos. Porque somos todos a junção do presente e do passado.

“Não há uma regra que nos permita antecipar que recordações ficarão gravadas no nosso cérebro e quais se apagarão pouco tempo depois da vivência.”

Penso nisto inúmeras vezes. No momento em que estamos a viver algo não sabemos quão importante esse momento será daqui a muito tempo. Eu adorava poder saber. Esse conhecimento mudava tudo!

“As amizades, como as línguas, são muito mais fáceis de aprender quando ainda somos crianças, quando o nosso cérebro é maleável e a vida não nos ensinou a ter vergonha. Talvez por isso os amigos de infância sejam os mais difíceis de perder – estão enraizados, já faziam parte de nós ainda antes de sabermos o que esse “nós” significa.”

Sim, é mais fácil fazer amigos quando somos crianças. Depois crescemos e temos visões diferentes do mundo podendo ou não fazer sentido manter essa amizade para a nova pessoa que somos. São as amizades de infância que melhor nos conhecem em todas as fases do nosso passado, contudo elas podem não nos conhecer no presente e haver outras amizades mais fortes criadas já em adultos, face àquilo que nos preocupa e encanta nesta fase. É maravilhoso fazer amigos novos. É imensamente gratificante manter uma amizade no tempo e espaço. Porém a amizade requer tempo e espaço. E só funciona quando estes se encontram.

“É impossível sabermos ao certo que pessoas ou que momentos terão realmente impacto nas nossas vidas. Enquanto vivemos, tudo é mutável, as coisas podem passar ou perder a importância. Talvez só saibamos mesmo o que foi relevante para nós quando estivermos às portas da morte, altura em que não haverá grande coisa que possamos fazer com essa informação – é um conhecimento que demora a chegar e que peca por ser útil durante pouquíssimo tempo.”

A velha lição de que só damos a devida importância às coisas quando já não as temos ou quando estamos em situações em que vemos a nossa vida como um filme. Raramente nos sentamos na mesa do café a passar em revista os nossos momentos. Só o fazemos quando achamos que estamos prestes a morrer, ainda que mesmo assim, não possamos ter a certeza que vamos mesmo morrer.

“Se, se, se, se. É uma palavra tão pequenina e tão poderosa, não é? Abarca o potencial daquilo que não dissemos, do que não fizemos, do que não considerámos, do que não perdemos tempo a explorar. “

O se é um perfeito inimigo meu. Está ao meu lado em todas as decisões que tomo. Está presente nos momentos anteriores à decisão e não me larga depois de decidido. Apesar de compreender que ele é necessário para considerar todos os cenários, não o aprecio. Faz me sentir insuficiente, insegura e insatisfeita a maior parte das vezes.

“Aliás, grande parte das memórias que tenho são já trabalhadas pelo esforço de me relembrar. Será que me recordo do que realmente aconteceu ou das histórias que contei a mim própria?”

Ah, isto, isto! Dou por mim, muitas vezes, a recordar histórias do passado e já não sei se foi assim que aconteceu ou se fantasiei situações porque gostava que tivessem sido de determinada forma. A nossa memória é algo fascinante por se lembrar de coisas, ter a capacidade de esquecê-las e ainda por saber criar outras tantas que não aconteceram sem ser na nossa imaginação. Sabem quando nos dizem que nós dissemos ou fizemos algo com que não nos identificamos e dizemos veemente que não. Não dissemos. Não fizemos. E a outra pessoa jura que sim. Algo em nós se apagou ou algo na outra pessoa se criou. Ou sabem quando se lembram de um argumento fortíssimo para usar numa discussão de há uns tempos? Será que daqui a uns anos me vou lembrar dessa discussão com esses mesmos argumentos que não disse mas nos quais pensei posteriormente?

Leram tudo até aqui? Fortes! Leiam “Quando os rios se cruzam” e comentem comigo a vossa opinião.