ate os comboios andam aos saltos

Este livro é corajoso. Ousado. E tão intimo que me senti meio invasora ao ler. Ah… e é absolutamente fabuloso de ler. Em “Até os comboios andam aos saltos” são ditas coisas que muita gente pensa e tem medo de verbalizar por poder ser mal visto ou interpretado.

Não sei se a pessoa não irá direta para o inferno quando dá por si a respirar fundo por o pai ter cancro, mas lembro-me que uma das primeiras coisas que pensei foi que o não ia ter de o aturar na velhice

Até os comboios andam aos saltos, Célia Correia Loureiro

Se fosse eu a fazer a sinopse

Uma mulher escreve de forma desenfreada e em catarse sobre tudo o que está mal na sua vida, e no mundo em geral, enquanto espera por um avião, num pequeno caderno e a lápis.

Acho maravilhoso que uma mulher que está mal com todos e tudo em redor consiga passar para o papel o que sente de forma tão crua e visceral e ao mesmo tempo tão verdadeira. Um conjunto de ideias pouco bonitas convencionalmente mas deliciosas de ler.

Uma das minhas frases preferidas é “descobri há pouco que não gosto de pessoas”. Desculpem, isto não é poesia?

Opinião “Até os comboios andam aos saltos” da Célia Correio Loureiro

A critica social no geral é deliciosa porque só a conseguimos fazer ironizando e só conseguimos este estádio de ironia quando “está tudo mal”. (Eu assumo-me como uma pessoa que diz mal de tudo, portanto isto foi ouro.) Escreve muito rápido, com medo que lhe fuja alguma indignação ou que a caneta não acompanhe o que a cabeça dita e por isso os assuntos mudam rápido e repetem-se com frequência. As palavras trazem emoções através da escrita ativa e acelerada. E tudo isso torna a leitura intensa porque parece que estou na cabeça dela a assistir a toda esta luta de ideias.

Torna-se um livro pesado. Mas não deixa de ser cómico. Esperem. Não é engraçado. Não é isso. Sabem quando dizemos aquela expressão “isto era cómico se não fosse trágico!”? É por ai. Porque ela fala de cancro e morte de forma despudorada. (Até a palavra desgraça tem graça dentro dela, estão a ver?) E ela tem “autoridade” para isso. Ela pode. Porque é a vida dela. E depois fala de família. De um pai doente, de uma mãe cheia de pressa. E de uma avó que é amor sem igual. E de relações. E da idade sem filhos.

A avó não era nada daquilo que estava esticado dentro do caixão de pinho ordinário

Até os comboios andam aos saltos, Célia Correia Loureiro

Os livros e a forma como os vemos à luz da nossa vida

Não tendo eu uma vida nada parecida à desta personagem, consegui tão bem sentir-lhe as amarguras, angustias, frustações, tristezas e lamentos. Levou-me a lugares que senti meus mesmo não tendo lá estado. É notável quando os escritores conseguem fazer isso.

Por outro lado, de forma inexplicável, “até os comboios andam aos saltos” levou-me a sítios dentro de mim aos quais nunca me permito ir, muito menos numa leitura. Isto para mim é novo e gostei da sensação.

Saio desta leitura com a convicta vontade de ler tudo o que a Célia escrever.